A eternidade antes da morte
Sim, ele morreu, disse Pilar, o rosto triste na telinha do computador. E lentamente, sem avisar, Pilar virou a câmera e mostrou o corpo do marido. Estendido na cama, o corpo magro, o rosto sereno, eis o morto. Sim, José morreu, porque não havia mais esperança mesmo. Mas ontem ele estava tão bem, disse Pilar.
Foi assim que o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, viu o amigo morto pela internet ontem pela manhã. Schwarcz leu a notícia da morte de José Saramago em algum site e ligou para Pilar, a mulher do escritor. O editor estava em São Paulo. Pilar, na ilha vulcânica de Lanzarote, nas Canárias, em território espanhol.
Falavam pela internet, pelo sistema Skype, viam-se um ao outro pela webcam, uma câmera acoplada ao computador. Calma, resignada, Pilar falou dos últimos dias do marido, disse que os médicos a prepararam para o fim e contou que na quinta-feira Saramago sentia-se disposto.
O escritor morreu em casa, aos 87 anos. Com problemas pulmonares, estava adoentado há anos. Tão fragilizado que não saía mais da ilha, onde vivia com a mulher desde 1993, quando deixou Lisboa. Teve falência múltipla dos órgãos. O mais popular dos escritores portugueses, Nobel de Literatura em 1998, autor dos best-sellers Memorial do Convento, Jangada de Pedra e Ensaio sobre a Cegueira, era pop no Brasil. Tão pop que seus livros já venderam aqui mais de 1,4 milhão de exemplares.
Schwarcz, seu editor e o primeiro amigo a vê-lo no leito de morte, foi quem o transformou em fenômeno literário no Brasil, um dos países em que mais vendia e onde era venerado também por sua capacidade de emitir opiniões controversas sobre qualquer assunto.
A paixão e o sucesso tardios
Se fosse um personagem, Saramago seria um escritor improvável. Sua primeira obra reconhecida como literatura de peso foi Memorial do Convento, publicado em 1982. Um dia, falando de acontecimentos tardios, admitiu:
– Tenho que reconhecer que as coisas boas da minha vida aconteceram um pouco tarde. Quando publico o Memorial do Convento, estou com 60 anos.
Com 64 anos, apaixonou-se pela tradutora María del Pilar del Río Sánchez. Casaram-se, e Saramago passou a produzir cada vez mais. Mas escrevia sem pressa:
– Não escrevo mais que duas páginas por dia. Parece pouco, mas duas páginas por dia, todos os dias, ao fim do ano são quase oitocentas.
Escritor temporão, página a página, produziu uma obra monumental. Antes mesmo da consagração do Nobel, o crítico literário americano Harold Bloom, que não costuma fazer concessões, afirmou:
– Saramago é o mais talentoso romancista vivo.
Mas nunca foi uma unanimidade. Críticos e leitores o incluíam na lista dos escritores chatos, seduzidos por experimentalismos que consideravam vencidos. Ao conceder-lhe o Nobel, a Real Academia Sueca reconheceu essas experimentações como virtude. Saramago era um fabulista, um inventivo contador de histórias que, segundo o próprio Bloom, assegurava a sobrevida ao romance.
– Ele escrevia de maneira rebuscada e barroca, mas tocava as pessoas, questionava até os limites a língua portuguesa. Usava essa lógica literal da cultura portuguesa para explodir a língua – diz Schwarcz.
O homem que Schwarcz viu morto ontem pela manhã preparava-se para a morte como uma despedida sem volta, sem retorno a lugar algum, sem nenhuma possibilidade de transcendência. Era comunista e ateu:
– Como será possível acreditar num Deus criador do universo, se o mesmo Deus criou a espécie humana?
Sua obra era a única garantia de alguma perenidade:
– Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida.
Até 1988, quando Jangada de Pedra foi lançado pela Companhia, Saramago era escritor de poucos leitores no Brasil, onde Memorial do Convento fora lançado pela Bertrand Brasil. Schwarcz o transforma em fenômeno de vendas, depois um encontro ao acaso com Ray-Gude Mertin, agente literária do português, em Frankfurt, em 1987. Saramago passa a ser editado pela Companhia. Schwarcz era o grande amigo brasileiro, que o acolhia em casa em São Paulo e com quem debatia literatura e política.
O editor lembra de um constrangimento com Saramago, ao lhe contar que seu pai, André, ficara chocado quando o escritor comparou as ações bélicas de Israel contra os palestinos ao extermínio de judeus em Auschwitz. André Schwarcz, já falecido, era imigrante judeu nascido na Hungria. Saramago ouviu a ponderação, aquietou-se, e a conversa foi encerrada.
Ontem, no início da tarde, ao falar com Zero Hora sobre a conversa que tivera pela manhã com Pilar, Schwarcz lembrou que foi quem a ajudou a comprar, em Lisboa, o primeiro computador para Saramago, em 1988. Foi pelo computador que o editor viu José morto.
Como se o próprio Saramago estivesse se apresentando como seu derradeiro personagem improvável, ao submeter o olhar do brasileiro ao confronto com a morte de um amigo por meio virtual.
Texto publicado em zero hora de sábado, 19/06/2010.
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